INCESTO PODIA, MAS ATOR NEGRO NÃO!

 INCESTO PODIA, MAS ATOR NEGRO NÃO!


"A estreia de "Anjo Negro" em 1948 não foi apenas um evento teatral, mas um furacão cultural e político que expôs as profundas contradições do Brasil da época.
Escrita por Nelson Rodrigues em 1946, a peça narra a perturbadora história de Ismael, um médico rico e negro, e sua esposa, Virgínia, uma mulher branca forçada pela família a um casamento de interesse. Virgínia, consumida pelo racismo e pelo pavor de ter filhos negros, comete o ato atroz de matar seus três primogênitos que nascem com a cor do pai. Apenas após a morte desses filhos, ela consegue ter uma criança branca, uma menina que, na maior das perversões, se torna posteriormente a amante do próprio pai, Ismael.

A peça era um espelho cruel da hipocrisia social e, por sua natureza chocante, abordando incesto, perversão, racismo e infanticídio, foi inicialmente censurada. Quando a liberação veio em 1948, a censura impôs uma condição absurda: nenhum ator negro poderia interpretar o protagonista.

Nelson Rodrigues bateu o pé. Ele insistiu veementemente que o papel de Ismael deveria ser de Abdias do Nascimento, a maior voz do teatro negro brasileiro e fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), que daria a autenticidade e a densidade necessárias ao personagem. No entanto, a determinação da censura era inabalável.

Sem alternativa, a produção recorreu ao ato racista do blackface: escalou-se um ator branco, Orlando Guy, que teve sua pele pintada de preto para representar o médico. A polêmica explodiu imediatamente. O que tornou o caso inédito na história do teatro brasileiro foi que, pela primeira vez, a crítica e o público se levantaram em coro para denunciar a injustiça e a hipocrisia de escalar um ator branco para encenar uma peça que fazia uma crítica tão visceral ao racismo.

O escândalo maior residia na dupla moral da censura: enquanto o Estado conseguia tolerar em palco os temas de assassinato de crianças, incesto e a mais profunda imoralidade sexual, a simples presença de um ator negro no papel principal de um drama sério era considerada intolerável e perigosa. "Anjo Negro" acabou entrando para a história não só por sua trama mórbida, mas por denunciar o racismo institucional que se escondia sob a fachada da moralidade."


(Na foto da postagem, o ator Orlando Guy antes e depois de se pintar. A atriz é a Nicette Bruno, que interpretava a filha e amante do próprio pai).

Fotos e vídeos antigos.

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